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Aquele Morto em seu Jardim

Meia

Curadoria: Fernando Lacerda

Outubro 2022

“Abril é o mês mais cruel, procriando
Lilases da terra morta, misturando
Memória e desejo, agitando
Raízes embrutecidas com chuva de primavera.”


T.S. Eliot - “A Terra Devastada”
 

Com esses versos o poeta T.S. Eliot abre um dos mais celebrados poemas modernos da língua inglesa. Nas múltiplas e fragmentadas vozes que compõem o poema, encadeia-se um sentimento ambíguo entre as possibilidades e esperanças futuras, e as ruínas de um passado traumático e devastador. Criado sob a sombra da primeira guerra mundial e da pandemia devastadora da gripe espanhola, no começo do século XX, o poema ressoa questões fantasmagóricas, que passados exatos 100 anos, persistem ainda hoje, permeando os sentidos de fragilidade da vida e as incertezas do futuro. 

 

Nas obras apresentadas na exposição “Aquele morto em seu jardim”, Victor Maia nos coloca defronte paisagens que, em larga medida, reverberam esse sentimento, tanto nos materiais que as compõem quanto nas imagens, que com eles o artista constrói. Em seu processo criativo, o artista coleta materiais descartados, utilizando-os como suportes pictóricos e como elementos constitutivos de suas paisagens. O procedimento de Maia pode ser rastreado numa longa linha da história da arte moderna e contemporânea, passando pelos Merz de Kurt Schwitters, ou pelas Combine Paintings de Rauschenberg. Tal como nas obras desses artistas, a associação de objetos mundanos ao plano da pintura sugere uma tentativa de colar arte e vida. 

 

A colagem realizada pelo artista se dá desde a composição do suporte da pintura. Madeirites, recuperados de ateliês de outros artistas ou de canteiros de construção na cidade, são justapostos preservando suas formas e outras características físicas pré-existentes, tais como pedaços de cartazes colados ou algum grau de decomposição da própria madeira. Sobre esse suporte o artista realiza sua pintura, ora preenchendo campos com tintas, figuras recortadas, restos de tecido, sacos plásticos ou caixas de feira, ora deixando o suporte completamente aparente. 

 

Devido a natureza do material e as escolhas de composição feitas por Maia, o que era inicialmente fundo converte-se também em campo pictórico, sustentando a complexidade da relação entre figura e fundo, entre a percepção e o real, e, por consequência, entre as estruturas de ordenação do mundo. De certa maneira, a justaposição dos elementos pintados aos objetos encontrados e deixados à vista em seus diferentes estados de decomposição dão a ver a história desses elementos e constituem um sentido de ressignificação da vida a partir de sua própria ruína. 

 

As pinturas de Maia trazem ainda outro traço singular, um ponto de vista quase sempre distante e elevado. Talvez o olhar que constrói tais paisagens em perspectivas flutuantes, seja um olhar próximo àquele do Anjo da História, de Walter Benjamin : “Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.”

 

O corpo bruto e vacilante, obtido desse olhar, orienta o artista em sua criação, sugerindo uma paisagem onde se confundem passado e futuro, onde se amalgamam o sonho e a ruína.


 

Fernando Lacerda

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