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Cega-rega

Bruno Ferreira e Filipe Barrocas

Texto: Cristiana Tejo

Abril/Maio 2023

Trás-os-montes é um território que parece imerso num tempo incerto, suspenso, em que facilmente nos perguntamos em que século estamos. Andamos quilômetros e quilômetros por sua topografia acidentada, suas estradas tortuosas, curvilíneas, vertiginosas e avistamos só serras e mais serras, vegetação e plantações esparsas, além de casas isoladas ou em pequenos vilarejos seculares. Trata-se da província portuguesa com o maior número de emigração e uma das que mais sofrem com o despovoamento, resultado da falta de oportunidades e de desenvolvimento econômico e social. Não é raro encontrar localidades em que não há mais escolas devido à ausência de crianças ou mesmo de jovens. Duas diferentes distâncias, videoinstalação de Filipe Barrocas que interliga como uma membrana porosa o dentro e o fora do espaço 25M, foi filmada nesta região. A paisagem agreste, quase desoladora, em que se dá o deslocamento de um homem e de um macho (ser que resulta do cruzamento entre cavalo e mula), torna difícil a associação com a história colonial brasileira, já que esta região é de onde se origina a Casa de Bragança, a casa real portuguesa entre 1640 e 1910, e, portanto, a soberana quando o Reino de Portugal passou a se chamar Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815-1822) e do subsequente Império do Brasil (1822 – 1889). No entanto, o diálogo entre os enquadramentos do vídeo (a perspectiva de ver o movimento do outro ao longe e de “fazermos parte” do movimento num plano perto) pode estender-se para um exercício de fabulação histórica e das interconexões temporais.


A leve transparência das telas favorece a porosidade, sobrepondo o Trás-os-montes atemporal, mas não a-histórico, com os seres híbridos de Bruno Ferreira (a partir do ponto de vista de quem chega) e a arquitetura modernista da Galeria Metrópole (sob o ângulo de quem entra no 25M). A escultura “Este verme vive dentro de você e controla tudo que você faz” acaba por incorporar um segundo plano da projeção, justapondo as conduções do macho e do verme. Como é sabido, o aparelho digestivo é formado por milhões de neurônios e no intestino habitam trilhões de bactérias, vírus, fungos e protozoários que fazem a conexão com o cérebro. Ou seja, a racionalidade depende também dos vermes e não apenas da capacidade intelectual de uma pessoa. Como nos ensina Anna Tsing “noventa porcento das células em nossos corpos não têm uma assinatura genética; elas são bactérias. No entanto elas estão conosco, e nós precisamos delas. Nossos corpos vêm a ser através delas. Para além de nossos corpos, nós não podemos sobreviver sem paisagens multiespécies. Nós nos tornamos quem somos através de agregados multiespécies”1 . O conceito de paisagens multiespécies de Tsing concentra-se na relação entre as espécies e os seres humanos em um determinado ambiente. Essa teoria desafia a noção tradicional de que os humanos são os únicos protagonistas na transformação da paisagem e que a natureza é simplesmente um recurso a ser explorado e dominado. Bruno Ferreira alimenta-se desta perspectiva crítica para endereçar as fantasias do antropocentrismo, explorando de forma irônica em seus trabalhos as paisagens tóxicas da modernidade.


E pensar que Portugal desempenhou um papel significativo na criação da globalização nos séculos XV e XVI e alicerçou as bases do extrativismo e do colonialismo que alimentaram o capitalismo, acelerando o Antropoceno… Outrora a maior potência do mundo, há pelo menos três séculos amarga a realidade de ser periferia da Europa. Essas experiências díspares complexificam nosso entendimento do que foi de fato o colonialismo português e como sua colonialidade reverbera na atualidade. Quem impingiu a destruição sistemática dos conhecimentos, saberes e formas de expressão cultural dos povos africanos e indígenas em detrimento da imposição de seus valores, normas e ideias, agora encontra-se numa posição de subalternização. Os saberes ancestrais e as formas de vida tradicionais em Portugal lutam para sobreviver. Filipe Barrocas e Bruno Ferreira escolheram nomear esta exposição como cega-rega, um termo que significa ao mesmo tempo o som das cigarras e um antigo instrumento musical vibratório que produz uma única nota. Cega-rega também é o título de um dos contos do livro Bichos de Miguel Torga, um clássico da literatura portuguesa, lançado em 1940. O escritor trasmontano de origem aldeã fortemente conectado à sua terra cria um universo em que humanos e animais partilham características e a mutabilidade da vida. Diferentemente do conto A Formiga e a Cigarra de La Fontaine que criticava a “preguiça” da cigarra por não trabalhar e só cantar, a cega-rega de Torga é uma ode à transformação e à jornada singular deste ser que sobe ao cume das árvores para cantar. Apesar de ter sido escrito há mais de 80 anos, este conto ressona na contemporaneidade, um tempo em que uma régua dita universal deixou de fazer sentido. 

 

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1.  TSING, Anna Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB mil folhas, 2019. P.76. 

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