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Calor Específico

Bruno Ferreira, Fernando Lacerda, Lara Ovídio e Victor Nascimento

Curadoria: Tálisson Melo

Setembro 2022

Isso não é uma digressão poética sobre termodinâmica.

 

É uma viagem sobre afetações entre específicos, disparada do contato  com as criações de quatro artistas reunidas em exposição na sala de  projetos 25M: Bruno Ferreira, Fernando Lacerda, Lara Ovídio e Victor Nascimento. Um conjunto de diferentes que me lançou de pronto numa  mesma pergunta, o ponto para mirar cada elemento e suas relações: 

Como a linguagem se tornou mais confiável que a matéria? 

Tendo vivido em cidades da Alemanha e Holanda, e florestas do atual  Suriname, na segunda metade do século XVII e comecinho do XVIII,  a naturalista e ilustradora científica Maria Sibylla Merian, estudou e  documentou em texto e imagem uma série de insetos, plantas, conchas e  bichos. Os fenômenos descritos por ela eram provenientes de diferentes  lugares, mais próximos ou distantes, e iam configurando um enorme  catálogo de singularidades das espécies, gêneros, filos e reinos da vida. As semelhanças e diferenças entre elementos são base do método científico  para a comparação e, logo, designação de uma coisa enquanto tal. Dotar  algo de existência na linguagem, passa pelo processo de conferir um nome, uma singularidade, cada coisa nomeada ocupa um lugar diferente na ramificação entre ser vida e ser espécie, ser específico. Nas ilustrações classificatórias e hierarquizantes da prática científica, a especificidade  leva a separações, afastamentos e dificulta a percepção da comunalidade  entre tudo o que se difere. Mas, ao mesmo tempo, tudo se relaciona. Só há algo específico porque tudo existe em relação, as partes e o todo se  recriando mutuamente. 

Na contramão do que se convencionava naquele tempo florescente do  Iluminismo, isolando cada espécie no retângulo do papel, as ilustrações  de Merian enfatizavam exatamente o dado da semelhança, misturando  fenômenos de diferentes reinos. Seu interesse era documentar os  estágios da metamorfose de larvas ou lagartas em borboletas ou  mariposas, compondo pequenas ecologias para num só desenho  articular as diferenças patentes do curto curso de vida desses seres e as semelhanças entre esses, folhas, flores e frutos. Aspectos de forma,  textura e materialidade de fenômenos da vida elegados a reinos distintos  são mostrados em mútua afetação, elementos radicalmente distintos que  se metamorfoseiam uns nos outros. 

A transformação do mundo em processo também é o objeto de captura  descrito poeticamente no trabalho de Lara, Só é possível lembrar  daquilo que ainda existe. Porém, impedida do mergulho taxonômico de  Merien em cada detalhe do fenômeno que representa, a observação de  Lara encontra o que não está mais presente, aparente, a vida submersa  daquilo que foi São Rafael Velha, povoado natal de seu pai, no oeste do  Rio Grande do Norte, apagado do horizonte semiárido na década de 1980  sob a enorme massa d’água de uma barragem. O que resiste é a silhueta  fragmentada das serras, lembrança imperfeita, ilustração hipotética que  faz colidir futuro e passado num contínuo presente interrompido. 

Fundindo radicalmente os reinos da vida – animais e vegetais –, com o da  não-vida – minérios e gases –, Victor modela uma explosão em Pluma77.  Adaptando-se às dimensões recomendadas pela tradição do arranjo  floral chinês, imprime um brotar de pétalas, também delineia a calda de  uma ave do paraíso em baile, e uma coluno de erupção que transforma  sua cerâmica de alta temperatura num vulcão subaquático. Ilustração de  uma paisagem latente de substância in/orgânica. 

Bruno oferece sua Trinita em resina e três ecologias em cultivos, duas  com microrganismos dos reinos fungi e bactéria, uma com moluscos  em suas conchas. Habitantes de um meio líquido contido em versões  vítreas de seus próprios corpinhos unicelulares ou de aparente unidade,  tão complexos em sua presença constitutiva de nossos organismos  animais-humanos. Essas matérias vivas tão específicas que geram cores,  volumes e texturas na obra de Bruno, esses seres que vivem em suas  próprias linguagens-materialidades além e aquém das nossas, me fazem  retomar o fio indagativo: Como a linguagem se tornou mais confiável  que a matéria? Essa questão trabalhada de modo tão sofisticado pela  física Karen Barad 1, quem, sem se encerrar numa só resposta, propõe  repensar a historicidade processual da temporalidade, exterioridade  e relacionalidade em topologias variáveis do mundo, num contínuo retrabalhar-se, uma dinâmica afetada e enredada da natureza das coisas.

 

Sua provocação de revisão feminista da filosofia da ciência se associa  diretamente às descrições analíticas da antropóloga Marilyn Strathern  sobre as conexões parciais que constituem indivíduo e sociedade  mutuamente. Strathern, além de fornecer um olhar atento às ilustrações  de Merian 2, também recupera da matemática de conjuntos uma imagem  que se faz cara ao pensamento sobre animais-humanos, quando  Mandelbrot pergunta “quão extensa é a costa da ilha britânica?” 3 e revela  sua constituição fractal, a terra penetrando no oceano como estrutura  espumosa de areia, enquanto o oceano penetra a terra através de sua  intromissão líquida em areia molhada. Essas bifurcações e penetrabilidades  caóticas são a matéria pulsante dos registros de Fernando em sua série de fotografias reunidas aqui como uma catalogação de simbioses em  diversas escalas. Em 1705, Merian dedicou a publicação de seu Metamorphosis Insectorum Surinamensium “a todas as pessoas amantes e  investigadoras da natureza”. Essa exposição CALOR ESPECÍFICO demonstra como esse chamado tem reverberado hoje em pesquisas  poéticas que se instalam nos desencaixes porosos das fronteiras entre  linguagem e matéria, cultura e natureza. Num mundo em que se faz cada  vez mais difícil pensar o que seria um estado natural, com tantas camadas  de impregnação das ações humanas, dos cultivos às culturas com suas  dimensões também destrutivas, quatro artistas se afinam, desconfiando  da linguagem com a matéria e da matéria com a linguagem. 

Tálisson Mel

 

1 KAREN BARAD. Performatividade pós-humanista: para entender como a matéria chega  à matéria. Revista Vazantes, Fortaleza, 2017. 

2 MARILYN STRATHERN. Enlightenment Dramas. In Relation: An Anthropological Account.  Duke University Press, 2020. 

3 MARILYN STRATHERN. Partial Connections. Londres, 1992.

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