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Footing

Romeu Mizuguchi e Felipe Ferraro

Curadoria: Julia Cavazzini

Abril 2023

São Paulo, 01.04.2023


 

Queridíssimos Felipe e Romeu,


 

Quando escrevo sobre vocês, estamos falando de duas maneiras de perceber o mundo completamente distintas. De um lado, o Felipe sempre que encontra um Barroquinh(1) adorno de ferro em um antigo portão, precisa refazer com suas mãos o percurso das rebarbas do molde. Por outro lado, o Romeu repetidas vezes arrumava as tesouras que eu trocava propositalmente de lugar em seu ateliê, sem nunca perguntar quem as mudava. São sensibilidades diferentes, mas que se encontram na lida com a matéria. Seja pelo tátil ou pela repetição, ambas existem de forma quase obscena. Estar junto com vocês nos momentos de fatura sempre me pareceu bisbilhotice minha, quase como uma voyeur que assiste casais apaixonados, despidos entre corpo e matéria. 

 

É através do Maximus (2) de performance que o trabalho de vocês acontece. Seja ao transformar o granilite da galeria em açúcares e suspiros – que na medida em que Felipe o refaz, toca o invisível (João e Maria, 2023) –, ou quando Romeu, cultuando os profanos materiais de sala de aula, passa a meditá-los em sua performance de destacar trajetos nos cadernos quadriculados (Carrosséis, 2023). É capturando a recorrência de subir e descer das escadas rolantes que se vê o ecoar de coreografias cotidianas (Circulação, 2023) e homenageando em broches o fugaz encontro de mãos desconhecidas (Acordo Tácito, 2023). É acariciando as imagens de cruising com o pincel que se encontra Idílio (2023), ou é circulando um espaço que se faz lembrar as tantas perspectivas possíveis de uma mesma forma (Ciclos, 2023). 

 

Imagino de alguma forma que, quando Felipe aprende com suas mãos ou quando Romeu coreografa objetos, evocam algum tipo de memória que não é visível. O mesmo quando usamos as palavras: enquanto escrevo esse texto em português evoco a história da colonização. Por isso faz tanto sentido que ao inserirmos o pajubá na nossa comunicação, recordemos não só um vocabulário afro-brasileiro, assim como uma história de resistência da comunidade LGBTQIAP+.

 

Footing, esse verbo que representa o ato de flertar à deriva, é um falso anglicismo, ou seja, um inglês forjado. Em inglês, esse termo existe só como gíria ou expressão de algo como “bater o pé” em relação a algo ou ter certeza de alguma coisa. Essa expressão, inclusive, tem origem no início de uma vida pública e urbana dos anos de 1920 em São Paulo, que tem muito mais influência do francês do que da cultura americana. Essa referência francesa permaneceu bem mais latente do que a cultura americana até os anos 60 - ano de inauguração da Galeria Metrópole – fazendo parte desses trajetos de flerte pelo centro, que vocês bem sabem, se dividiam em Grand Tour e Petit Tour. Foi nesse período que o centro, como diria Bivar no livro do antropólogo Nestor Perlongher (3), se tornava um “tônico gay de bares, boates, inferninhos, cinemões, galerias, escadas freqüentado por travestis, bichas irremediavelmente pintosas, hermafroditas etc”. 

 

Mas é nesse mesmo prédio que se carregam as violências vivenciadas por pessoas LGBTs, em ocasiões como a visita da Rainha Elizabeth em 1968, que resultou em uma ação higienista, na qual Perlongher fala que se “prendeu meio mundo e instalou o grilo, como se a rainha a qualquer momento resolvesse irromper pela galeria”. Mais tarde seriam as ações da ditadura, seguidas pela violenta presença do delegado José Wilson Richetti, que afirmava “limpar a cidade dos assaltantes, traficantes de drogas, prostitutas, travestis, homossexuais e desocupados”. Por fim, a violência causada por uma epidemia que foi transformada em mais uma forma de se criar um cerceamento para sexualidades dissidentes. A Galeria Metrópole que teve seu auge e declínio nos anos 60, até hoje carrega, em sua arquitetura, a forte presença da comunidade gay, que sobrevive em histórias de afeto, resistência e liberdade, que nesse extenso espaço temporal se repetem.


Agindo contra as ondas de opressão, que por vezes silenciaram o tesão, vocês rebatem de forma encantadora com o fazer libidinoso do trabalho. Influenciada pela paixão que vocês tem em manusear a matéria, gostaria devolvê-los, como presente, essa citação que Audre Lorde escreveu em 1980 sobre os usos do erótico:

 

“O erótico é uma medida entre o início de nosso senso de identidade e o caos de nossos sentimentos mais fortes. É uma satisfação interna que, uma vez que a experimentamos, sabemos que podemos aspirar. [...] Esta é uma das razões pelas quais o erótico é tão temido, e tantas vezes relegado para o quarto sozinho, quando é reconhecido nos todos. Pois uma vez que começamos a sentir profundamente todos os aspectos de nossas vidas, começamos a exigir de nós mesmos e de nossas atividades de vida que eles se sintam de acordo com aquela alegria da qual sabemos ser capazes. Nosso conhecimento erótico nos fortalece” (4)

 

Por fim, o que fica é essa tentativa de dar movimento ao que se tornou estático, na herança histórica da arquitetura, e fazer difundir a importante presença da comunidade gay na construção cultural da cidade. É sobre fazer ver o desejo embutido para além do fazer artístico de vocês; É sobre o que suas identidades que vêm a público ou o que permanece em segredo ou privado, mas que em toda instância são parte dessa história.  



Mil beijos
Julia Cavazzini

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1. Bar referência da comunidade gay nos anos iniciais da Galeria Metrópole.

2. Antes de ser batizado de Galeria Metrópole, o conjunto de prédios quase recebeu os nomes de Centro Metropolitano de Compras e Conjunto Maximus.

3. PERLONGHER, Nestor. O negócio do michê 2ª ed. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2008.

4. LORDE, Audre. Uses of the Erotic: The Erotic as Power. In: Linda Lederer (ed.) Take Back the Night: Woman on Pornography. New York: William Morrow and Co., 1980.

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